quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Um amor sob o olhar da meia lua






"Minha história começa há mais de vinte anos. Minha mãe, uma baiana negra linda se apaixonou, num Carnaval de Salvador, por um descendente de italianos. Um branco charmoso, de olhos esverdeados, que se rendeu aos gingados da minha mulata!
Ela conta que durante aquele Carnaval, ao som do Chiclete com Banana, saíram várias vezes das cordas do trio elétrico, para se enamorar sob o olhar da Lua, na areia da praia. Aquilo que surgiu ali, no meio da multidão, no meio dos sons de axé, se transformou no amor que resultou em mim.
Eu, uma meio-mulata, de olhos verdes cor de azeitona, cabelos ondulados castanhos, com traços finos no rosto, nasci de parto normal há 23 anos. Meu nome é Joana. Tive uma infância quase normal. Sempre sentia uma dorzinha nos ossos, e algumas vezes muitas dores que eu não sabia explicar pra minha mãe. Fui ao hospital uma vez e lá a médica disse pra minha mãe que eu tinha uma anemia e que precisava saber o que era. Então, depois de muitas vezes que usei gotinhas de ferro oral pra curar minha anemia, que deixava meu cocô preto, me lembro bem disso, soube ser portadora de Doença Falciforme SBTalassemia. Os anos foram passando foram passando e eu ia convivendo com a doença, com as dores, com as mudanças no meu corpo que demoraram muito mais a aparecer do que eu percebia nas minhas amigas da escola. Eu, diferente delas, volta e meia ficava com o branco dos olhos amarelados. Sempre me achavam um pouco doente e eu sempre ouvia que era assim!
Era difícil minha mãe me "largar', Ia a todos os lugares comigo. Nem sabia o que era amar algum garoto. Nem me permitia isso. Não sabia se podia amar. Não sabia se poderia ser mãe. Tinha medo. Ainda tenho um pouco de medo. Mas um dia, me apaixonei.
No começo tive vergonha de dizer que era doente. Ele me acolheu de uma forma tão linda, que foi difícil não me apaixonar. Um amor de uma meia lua. Hoje estou esperando um fruto desse amor. Minha médica, acredite, usa o codinome Joana há muito tempo, me fez acreditar  que eu poderia levar uma vida normal. Me fez acreditar que eu poderia ser mãe! Eu poderia um dia gerar dentro de mim, de um corpo que sempre acreditei doente, um ser de um amor!
Hoje, me sinto plena!
Me cuido, tomo as medicações que me deixam levar uma vida praticamente normal. Daqui a 4 semanas estarei dando à luz. Hoje acredito ser possível viver com alegria na vida!
Hoje troco minha meia lua, por uma lua nova! Hoje, sei que posso ser uma mulher e posso ter um filho pra chamar de meu!!"

Texto escrito pela Dra Roberta Gava, Hematologista de Brasília.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A dor além da dor física






Falar da dor além da dor física na Doença Falciforme é falar de várias dores que vão além do nosso corpo, afetam a nossa alma, nossa mente, nosso emocional, espiritual e a nossa vida como um todo.

É falar da dor de depender de um atendimento emergencial e não ser atendido como prioridade.
E muitas vezes ter que esperar muitas horas gritando, chorando, gemendo de dor sem ter atendimento. E ainda assim quando for atendido, ser destratado, ser negligenciado e deixado de lado, agonizando em dor e sofrimento por não acreditarem em você.
Da dor de ser taxado como um viciado(a) por aqueles que gostaríamos que cuidassem da nossa dor.
É a dor de gritar por horas esperando por uma medicação que alivie o sofrimento e ao invés dela receber dipirona pois realmente acreditam que a sua dor é inexistente, que você tem dependência química de medicações mais fortes e muitas vezes vir a óbito aguardando a devida atenção que poderia ter lhe salvado a vida.
É resistir ir ao médico e segurar a dor em casa por medo daquilo que já foi dito acima. E muitas vezes ir numa situação irreversível que te levará ao óbito.
É receber a indiferença de alguns de seus familiares e algumas outras pessoas por acreditarem que você não tem nada de importante, que a dor que sente nem é dor, que sofrimento mesmo tem quem tem câncer, AIDS, etc... você tem é manhã, preguiça, falta de coragem para se manter num trabalho. É um vagabundo(a) que só dá trabalho aos outros e finge sofrimento para ter a piedade alheia.
É receber destes conhecidos, que se passam como familiares, ou de desconhecidos, olhares de crítica, de desaprovação, desconfiança, sentenciando o que quiserem pra você, sem ao menos se informarem sobre o que julgam saberem.
É ter vontade de trabalhar e não conseguir permanecer no trabalho, devido às constantes internações e consultas médicas, assim como exames laboratoriais. 
Ou se manter num emprego em detrimento de sua saúde, escondendo de todos o que realmente possui, fingindo estar bem quando precisaria de uma pausa, pois seu corpo não está mais aguentando. E muitas vezes por não ter outra opção além desta. Pois precisa do dinheiro para se manter e manter sua família. E assim acaba, ao longo dos anos, agregando em seu organismo complicações que poderiam ter sido minimizadas.
É não receber do meio trabalhista direito algum para permanecer empregado e ao mesmo tempo poder cuidar bem de sua saúde.
É passar num concurso público e ouvir de um perito médico que você não deveria nem estar viva com a hemoglobina tão baixa que possuí, quem dirá querer ter o direito à um cargo público. E ouvir de um outro perito que você quer mesmo é "mamar nas tetas do governo" já que é incapaz de trabalhar. É ter que apelar 3 vezes com recurso até conseguir a vaga que lhe é de direito. É sentir o pesar de que algumas vezes você realmente não dará conta do seu trabalho e terá sim que se afastar e que isso não é porque não se importa com o seu trabalho, mas sim porque sua saúde assim lhe pede. E você mesmo sabendo que não está fazendo nada de errado, sentir culpa e vergonha de si mesmo(a) por ter de estar afastado(a), sendo isso apenas o exercício do seu direito.
É muitas vezes ser gozado no emprego pelos colegas de trabalho e ser destratado ou por suas ausências necessárias, ou por sua necessidade de não fazer esforço demasiado para não se sobrecarregar. E se sentir ultrajado, humilhado com isso.
É não ser visto como uma pessoa producente, embora você saiba que seja, e muitas vezes acreditar em sua incapacidade por não conseguir se manter num emprego por longo período de tempo. E mesmo assim, nunca desistir de agarrar uma oportunidade de trabalho. E algumas vezes viver num eterno conflito consigo por saber que será essa a sua luta pelo resto da vida.
É a dor de saber de pessoas que deveriam nos defender, que dizem abraçar à causa falciforme, mas ao contrário do que dizem e pregam, acabam por acreditar que a pessoa convivendo com a doença falciforme procura motivos para adoecer, que faz por onde ficar em crise. É ver essas mesmas pessoas não acreditarem na sua capacidade apesar de passarem à vida ao seu lado dizendo que está lutando pelos seus direitos e apoiando a causa, quando na verdade só querem cargos ou a visibilidade que essa luta pode dar-lhes. E deixam isso bem expresso com frases como: "Tadinho(a) de fulano de tal, não pode assumir muitos compromissos, a doença não deixa.", "Coitado de fulano(a) está internado de novo, mas também procurou, saiu a noite, foi ontem à praia, só pensa em se divertir"... sendo que muitas vezes não saímos, nos cuidamos e ainda assim a crise vem. O sair simplesmente não é motivo que provoque uma crise. Precisamos sim sair, viver, e aproveitar o pouco que temos à nossa disposição. Ou ainda ouvir algo como : " Fulano(a) não pode estar à frente de uma Associação. Como um falciforme pode querer estar à frente de algo que não vai dar conta". Falas assim, vindas de quem conhece a Doença Falciforme é uma sentença de que somos todos incapazes e de que essas pessoas que assim o dizem, não levam à sério a causa que parecem abraçar. Se utilizam da causa, provocando asco àqueles que realmente se importam e lutam sim por nossos direitos. E estes nos causam ainda mais dor, por estarem infiltrados em movimentos que nos dizem respeito e acabam por desacreditarem em nossa força e capacidade.
É a dor de encontrar alguém que ao invés de te amar, valorizar e te apoiar pelo que você é, te culpar por ter uma patologia crônica, te humilhar dizendo que "você é uma farmácia ambulante", se afastar por  você ficar muito internado(a). O que é pior para os rapazes pois a nossa sociedade cobra muito mais deles.  É ter medo de que o amor verdadeiro não chegue por você levar uma vida assim tão distinta de quem é saudável. E quando o encontrar ter mais medo ainda de o perder diante de todas as dificuldades a serem enfrentadas juntos.
É receber o abandono de quem dizia te amar quando você recebe o diagnóstico de que teu filho(a) é uma criança com doença falciforme. É receber a desaprovação da família de seu parceiro(a) por ser o "seu lado da família que deixou essa carga ruim para essa criança", é receber de todos os lados condenação e sentenças da ignorância e do desconhecimento, da falta de informação.
É ter o peito arrebentado de medo, de angústia, de caos por ver tantos irmão de meia lua indo embora por negligência, abandono, despreparo, desinformação e pensar que o próximo pode ser você.
É ter a alma dilacerada por não termos ao nosso lado à informação da gravidade que é o que temos. De muitos não levarem à sério que a falciforme se não for bem cuidada levará  muitas vidas ao óbito fácil e rapidamente.
É a dor da humilhação de ter de passar uma noite inteira repleto(a) de merda e urina em seu corpo por negligência da enfermagem que não foi uma única vez te ajudar a usar a comadre/papagaio, durante a madrugada em que você não conseguia ir sozinho(a) ao banheiro e por não aguentar esperar mais, tentou fazê-lo sozinho(a). E ainda por cima ouvir  na manhã seguinte de que a culpa foi sua, pois não soube esperar "uns minutinhos". 
É ter a humilhação de dormir molhado(a) com sua própria urina por ter se mijado todo(a) tamanha a dor que sentiu durante a noite e ninguém da enfermagem ter ido te ajudar, te trocar, ou ao menos se informar sobre como estava. E na manhã seguinte não receber nem um banho de leito e ter de permanecer com a mesma roupa até que sua visita chegue, se você tiver a sorte de ter visitante. 
É sofrer em silêncio nas madrugadas no leito do hospital sem receber a sua medicação, pois a enfermagem não compareceu nos horários que deveria ter comparecido. E ainda ter de ouvir na manhã seguinte que sua medicação foi entregue sim, que consta como dada e você saber que não recebeu e sua dor permanecer por negligência.
É a dor de no período de escola não poder ir ao banheiro, pois a professora não acredita que você queira ir novamente ao banheiro pois já foi mais de duas vezes. É a dor de ser destratado pela professora e direção da escola e impedido de frequentar à aula por terem medo de estar com hepatite, devido aos seus olhos amarelados (ictéricos). Ter o descaso de um profissional que deveria te auxiliar  e não te humilhar quando diz para uma classe inteira: "não sentem perto de fulano(a) que o que ele(a) tem é contagioso". É não poder participar de atividades físicas na escola por não saberem que respeitando os seus limites você pode sim participar. É precisar muitas vezes de um período a mais para concluir os estudos devido às internações, hospitalizações, mas ainda assim poder concluí-lo desde que respeitem esse seu direito e compreendam suas limitações.
É sentir no peito e na alma a dor que você causa àqueles que te amam e estão sempre ali ao seu lado, que passam dias, meses te acompanhando em longas internações, aguardando que você retorne de um coma, que volte sem sequelas de um AVC, que volte para casa o mais rápido possível. E não poder fazer nada por eles, assim como não pode fazer por si mesmo.
É ter o medo rondando o teu ser. O pavor de não ser atendido a tempo, de receber uma medicação errada durante um plantão tumultuado, de vir a ter todas as complicações possíveis da doença e vegetar. É ter medo de fazer aqueles que ama sofrerem contigo, em sua dor. 
É ter vontade de se anular, de não ser, de morrer... ou de ter realmente câncer ou AIDS pois aí sim te tratariam com dignidade em sua doença. Pois são patologias conhecidas e ninguém duvida do sofrimento que elas causam.
É a dor de sentir tanta dor que você espera não acordar, para nunca mais sentir algo assim. Mesmo tendo o amor de todos que estão contigo e amá-los igualmente, tamanho o desespero e aflição que a dor pode causar.
A dor frequente te silencia, te modifica, te entristece...
É ter que lidar com tudo isso, dentro de si e ainda assim permanecer forte. Ainda buscar caminhos para somente ser. Para permanecer vivendo e lutando por uma vida melhor. Por um tratamento mais digno. Por uma sociedade que reconheça o que sentimos e vivemos, sem julgamentos, discriminação e preconceito.
É estar dilacerado(a) e ainda assim ter no rosto, na voz e no corpo a força da resistência.

Essas  e outras são as dores que sentimos, diariamente. As dores que aprendemos a ter e a lidar, convivendo com elas assim como convivemos com a falciforme.