domingo, 30 de julho de 2023

Mudanças em minha vida nesses treze anos




 Iniciei esse blogue em 2010. E relendo algumas coisas percebi que em relação à Doença Falciforme pouca coisa mudou nesse período. Mas existiram sim algumas pequenas conquistas. E na minha vida, existem grandes conquistas no quesito qualidade de vida. Então, resolvi registrar aqui essa evolução, essas conquistas para poder mensurar novos avanços no futuro. 

Em relação as pequenas conquistas no tratamento da Falciforme, temos:

- O uso do Hidroxiureia desde 1 ano de idade (em alguns casos até antes) e há 13 anos atrás seu uso era mais restrito. Não que hoje em dia não haja médicos contra o uso na infância, aliás ainda há médicos que desconhecem e pouco prescrevem o seu uso devido ao desconhecimento. 

- O TMO com 50% de compatibilidade (esqueci o termo correto dado a este tipo de Transplante), onde pais e não apenas irmãos podem ser doadores, e não precisa ser 100% compatível. No entanto esse tipo de transplante ainda é feito mais na rede privada, que inclusive é o muito procurado atualmente. 

- O TMO utilizando-se a medula do paciente com alterações genéticas nas mesma ,já estão em testes. 

- O surgimento do Crizanlizumabe, um medicamento de uso IV exclusivo para pacientes Falciforme que propõe a diminuição das crises álgicas. Ainda não implementado no SUS mas em aguardo da implementação. 

- A classificação de atendimento prioritário nas triagens de emergência, mas essa conquista infelizmente não é amplamente cumprida. Ainda passamos muito perrengue na triagem de emergência pois desconhecem essa nossa necessidade. E isso muitas vezes pode custar as nossas vidas.

E essas são as principais e pequenas conquistas. Pequenas pois se de um lado as temos, do outro temos diversos empecilhos para alcançá-las. Elas existem, mas nem todos acessam pela enorme falta de conhecimento sobre a Doença Falciforme mesmo entre os profissionais da saúde.

E em minha vida, muitas grandes conquistas conseguiram me dar uma qualidade de vida que jamais pensei que teria. hoje estou com 44 anos de vida, e ainda tenho muitas crises de dores sim, infelizmente, mas na grande maioria das vezes tratáveis em casa. Tenho internado no máximo 3 vezes ao ano. O que era muito raro pra mim. Eu cresci internando mais de 10 vezes ao ano. E essa mudança se deve a algumas mudanças na minha vida.

Hoje moro em Belo Horizonte, MG. O clima aqui não muda tanto como em SP, então as crises por mudanças climáticas diminuíram drasticamente. Fiz algumas mudanças alimentares, reeducação alimentar (que ainda está em processo), diminuí açúcar, doces, enlatados e embutidos. Retirei refrigerantes, leite e derivados. E pretendo retirar o glúten. Esse é bem mais difícil, confesso. E isso me deu outra disposição. Pois a diminuição desses alimentos diminuem também o processo inflamatório que a Falciforme provoca em nosso organismo. Não estou dizendo para retirarem como eu fiz com algumas coisas, mas se ao menos reduzir, já terá um efeito benéfico.

Descobri alguns tratamentos alternativos maravilhosos que também reduzem o processo inflamatório:

- Ozonioterapia

- Uso do óleo de canabidiol

- Meditação, relaxamento, práticas como Yoga, Pilates, etc

- Psicoterapia

- Suplementação alimentar (feita com auxilio de nutricionistas, nutrólogos, ortomolecular, etc)

- Exercícios respiratórios

Tudo isso melhorou a minha qualidade de vida. Reduziu o uso de medicações para dor. E isso é uma grande conquista. 

É claro que ainda sinto dores, ainda tenho crises e infecções, mas não mais como antes. E ainda assim, com tudo de bom que isso me trouxe, a convivência com a Falciforme permanece sendo difícil e complicada. Já que o desconhecimento da mesma faz com que o outro não nos compreenda, não nos respeite, etc.

Mas quem sabe se em 2033 as coisas não sejam diferentes. Se eu estiver viva até lá, venho aqui falar mais sobre mudanças. 

A todos que convivem com a Doença Falciforme o meu desejo de que as coisas sejam melhores em suas vidas! Que haja esperança de cura alcançando a todos! Abraços! 





segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Entre a alegria e a dor, a existência e as dúvidas



Dia 12 de Outubro foi meu aniversário. Celebrei 39 anos de vida. 
Olho para trás e fico imensamente feliz ao ver tudo o que passei para chegar até aqui.
Todas as dores superadas, as crises, internações, os momentos de quase morte.
Quase fui muitas vezes. Algumas cheguei a duvidar de que um dia eu chegaria a essa idade em que estou. Hoje tenho mais fé e esperança em ir ainda mais longe.
Mas não foi fácil e não é fácil. A cada dia lidamos com a inconstância do ser. Estar vivo é isso mesmo, não saber o dia de amanhã. Mas quando se tem uma doença crônica o dia de amanhã é sempre uma vitória. A gente nunca sabe quando o amanhã não virá mais. Mas a cada dia, acordamos e damos o melhor para que ele aconteça. A cada dia enfrentamos o medo e a dor. A insegurança e a falta de oportunidades em muitos campos de nossas vidas, como no setor profissional. A empregabilidade para quem tem doença crônica é um grande problema. E muitas vezes nossa maior frustração. Eu tenho 39 anos e as vezes sinto vergonha por não ter um emprego. Por não me sustentar, por não ter uma independência financeira. Mas ao mesmo tempo, sei que nossa sociedade cobra muito de quem está inserido no mercado de trabalho e essas cobranças podem interferir na qualidade de vida de quem tem doença crônica e especificamente a Falciforme. Ou você se adéqua às exigências e dá o seu máximo em detrimento à sua saúde, e futuramente pode perder em qualidade de vida. Ou você se afasta e prioriza a sua vida e sua saúde. Eu escolhi a segunda opção. Já fui concursada, já tive meu momento de glória, mas acabei desistindo de tudo, pensando em viver mais e melhor. Mas mesmo consciente disso, não é fácil arcar com esta escolha. Hoje atuo como artesã, mas não possuo renda fixa. Passo meses sem vender absolutamente nada. E agradeço aos meus por me auxiliarem financeiramente. Mas também me vejo pensando: e no dia em que não houver mais ninguém para me bancar, ajudar?! Não tenho respostas para essa pergunta, só tenho receios.
Mas é vida que segue e parar por medo não é algo que faça parte do meu ser.
Eu celebro diariamente essa vida. Esse presente que é estar aqui hoje, agora. Podendo sentir o ar preenchendo os meus pulmões e a força vibrando em cada músculo do meu corpo.
Sou grata demais à Vida!!
No entanto, em meio à alegria, a dor e à existência, sinto também a tristeza. Pela perda de inúmero irmãos de meia lua que não puderam estar onde estou. Que tiveram as vidas ceifadas, roubadas, levadas pelo descaso, pelo desamparo, pelo desconhecimento de como lidar com a Falciforme.
Queria que todos pudessem gozar da vida com mais qualidade e sem esse medo contínuo de que na próxima curva, na próxima crise, a vida se esvaia. 
Eu celebro minha vida e choro pelas que não estão mais aqui.
Festejo minha existência e sinto o pesar da dor de quem perdeu seus entes queridos para a doença.
Sinto o peso da derrota deles, apesar de toda a luta travada e muitas vezes travada à sós. 
Hoje tenho 39 anos e 4 dias de vida! Hoje me basta saber que ainda respiro, que estou numa fase boa, sem crises, sem internações, sem complicações. Hoje me alegro pelo caminho que trilhei até aqui. Hoje eu poderia não estar mais no mundo, mas aqui estou. E só o fato de assim ser, trago na alma e coração a Gratidão!! 
E seguirei Grata à Vida!! Por mim, pelos meus e por todos aqueles que necessitam de cuidados para permanecerem por aqui. Que a vida nos salve e nos brinde!!







segunda-feira, 20 de junho de 2016

Minha experiência com o Hydrea



Eu iniciei o tratamento com o Hydrea muito tempo depois do seu surgimento. Sempre tive muitas crises, infecções de repetição, ora era a garganta inflamada, ora era infecção na bexiga, ora as duas coisas, mais pneumonia, etc. Passei a maior parte da infância, adolescência e inicio da juventude em hospitalizações. Tinha mais ou menos umas dez internações por ano, quase sempre com duração posterior a dez dias. E mesmo diante deste quadro, quando descobri que havia o uso de um fármaco que estava reduzindo as crises em pacientes e solicitei o mesmo à minha médica, ela se recusou. Passei anos tentando convencê-la de que eu precisava daquele remédio. E só o consegui em 2007. Quando passei um ano (2006) quase que inteiro em internações. Tive duas que duraram 25 dias. As demais eram dez dias internadas, uma semana em casa, mais quinze dias internadas, três dias em casa, e assim foi o ano inteiro. E em novembro de 2016, numa internação que quase me levou desse mundo, em prantos eu disse a médica que se ela não me desse o Hydrea eu atentaria contra a minha vida, pois estava cansada daquilo, que não queria mais viver daquele jeito pois aquilo não era vida. Falei chorando e com raiva. Lembro até hoje que ela sorrindo me disse: não é para tanto. Você sabe que vida de paciente falciforme é assim mesmo. Mas pode deixar que vou te passar o remédio. Ninguém vai morrer aqui.

Lembro que fiquei com muita raiva da forma que ela reagiu e por não ter me dado esse remédio antes. Eu não morri, mas poderia. Foi uma crise forte, com pneumonia e derrame de pleura que evoluiu para embolia pulmonar. Mas bem, ela finalmente cedeu. E com uns seis meses de uso eu ainda estava apresentando crises. Persisti tomando o remédio, apesar de ter tido reações como dor de cabeça constante, náuseas, tontura, aumento do sono, dor no estômago quase que constante. Persisti pois havia lido e visto melhorias em muitos pacientes. Quase um ano e meio depois as crises começaram a diminuir. (É importante dizer aqui que cada caso é um caso, essa é a minha vivência, mas conheço pessoas que com um mês de uso se sentiram bem melhor)

Os sintomas adversos cessaram e vi que havia valido a pena ter conseguido persistir com o tratamento. Não que após o uso do Hydrea eu não tivesse mais crise. Mas após o seu uso não tive mais internações longas e repetitivas. Diminui as infecções de repetição também. Passei a ter outra qualidade de vida.

Hoje ele é o único remédio capaz de fazer isso, de nos dar uma maior qualidade de vida. E não é justo que esse tratamento nos seja negado. Esse remédio está em falta na rede pública de saúde há quase um ano em muitos estados brasileiros. Muitos pacientes estão tendo mais internações e crises de dor pela sua falta. Muitos outros estão morrendo pela falta de distribuição deste pelo SUS. Eu sei o quanto é doloroso não ter uma medicação que você sabe que lhe fará bem. Eu sei o quanto dói as crises que sentimos. Eu sei o quanto dói o medo de ser a última crise, de ser a última vez entre os nossos. Eu sei e por saber é que me dói esse descaso conosco. Me dói saber que muitos tratamentos bem mais caros que o Hydrea são custeados pelo SUS e nunca faltam na rede. Me dói saber que exista apenas uma empresa que fornece esse remédio. São tantas as dores que temos que passar nessa vida e a dor do descaso dói como se fosse uma crise álgica.
Ontem foi o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme. E a falta desse medicamento só mostra o quanto ainda precisamos caminhar em busca dessa real Conscientização.







Sobre a falta do Hydrea e o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme



Ontem foi o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme.

Esse dia foi oficializado pela Organização das Nações Unidas - ONU no dia 19 de junho de 2009, com o objetivo de dar visibilidade e reduzir as taxas de morbidade e mortalidade da doença. Que apesar de ter grande incidência na população mundial e principalmente no Brasil, ainda é desconhecida. O dia foi criado, a visibilidade ainda não veio e muito menos a redução da morbidade e mortalidade. Ontem o manifesto foi pela falta de um atendimento adequado, do conhecimento  e despreparo dos profissionais de saúde e principalmente da não distribuição do único fármaco capaz de aumentar a nossa qualidade de vida, que é o Hidroxiureia - Hydrea.
O remédio está em falta nas farmácias de alto custo de todo o Brasil. Em alguns estados já há quase um ano. E enquanto assim permanece, temo um grande aumento no número de crises, internações, complicações e óbito pela falta do mesmo.
É um descaso total. Causa revolta e indignação.
O pior é que mesmo estando em falta na rede pública de saúde, pode ser encontrado à venda nas farmácias por um custo que varia de 190 à 320 reais.
A população que tem falciforme é composta em sua maioria por pessoas sem condições econômicas para arcar com essa despesa.  
Enquanto quem não pode comprar só vê se agravar a sua condição física, o Ministério da Saúde se cala diante das indagações feitas sobre a falta do Hydrea. Ontem a página do mesmo no Facebook teve o maior índice de compartilhamentos (3.486) na postagem sobre o dia, e mais de 170 pessoas comentando e questionando sobre a falta do remédio. E o que houve em resposta foi apenas o silêncio.
Silêncio esse que vem minando nossas forças e aumentando cada dia mais o número de óbitos de quem convive com a Falciforme. Me pergunto até quando?! E espero que um dia a resposta chegue em solução e não apenas argumentos vazios de significado.





(Imagem do Grupo Interação Falciforme)



segunda-feira, 13 de junho de 2016

Dias frios e as crises de dor

Impossível passar por dias frios sem temer uma crise. O medo meio que ronda os espaços. Fica de soslaio, camuflado, só aguardando uma brecha para se impor, por mais que queiramos que ele fique de fora.
Toda vez que esfria muito penso nos meus amigos/irmãos de meia lua espalhados pelo mundo. Pois só quem tem a patologia compreende a dimensão do que é sentir dor pela mudança climática. Só quem já sentiu na pele compreenderá que nem sempre a dor veio por descuido, por não termos nos agasalhado direito, pela exposição ao frio, etc... e sim que ela veio por puro intrometimento mesmo.
No frio é assim, a dor se intromete em nossas vidas. Chega sem dar motivos ou explicações e vai querendo permanecer.
Atualmente ando bem resistente. Ainda não senti nenhuma dor com essa virada do tempo. E espero não sentir. Quero mais é permanecer em minha resistência física, emocional e psicológica usando-a como barreira para qualquer crise que queira invadir meu espaço.
E torço para que essa barreira seja erguida na vida de cada um que sabe bem o que é conviver com a falciforme.
Mas houve um tempo em que era só começar toda essa mudança climática e eu já estava com dor. Não precisava nem cair muito a temperatura não, com 16 graus minhas pernas já anunciavam uma crise. Aí já viu... a dor vai se espalhando, se alastrando pela coluna e quando menos se espera já está no corpo todo. Isso quando não vinha acompanhada de uma pneumonia. E eu nem precisava sair da cama para ter uma. Sempre achei incrível essa nossa "capacidade" de ficar mal quando tudo o que queremos é estar bem e fazemos de tudo para que nada nos atinja. Você mal sai de casa, se entope de roupas, se hidrata mais para prevenir uma crise, faz todo o procedimento necessário para não adoecer e eis que se surpreende com dor, pneumonia, crise torácica, enfim... essa é a caixinha de surpresa que a Falciforme nos entrega.
Eu tinha uma raiva imensa quando em crise, chegava no hospital para o atendimento e ouvia um clássico: nesse tempo vocês tem que se cuidar mais, para não vir ao hospital. Como se eu não tomasse todos os cuidados possíveis. Deixava até de sair para não ficar mal, e ainda assim, ficava. Uma fala dessas é de matar. Quem é que procura o hospital por querer, quem em sã consciência faria algo assim?! Ouvir que se está com dor por não ter se cuidado (quando tudo o que mais se faz é exatamente se cuidar) é a pior coisa que existe. Então se você convive com alguém que é paciente falciforme, por favor, a menos que você tenha certeza de que essa pessoa não está se cuidando, não lhe diga nunca algo do gênero. Entenda que nem sempre a pessoa pode controlar uma crise, por mais que tente. Entenda que a doença se manifesta diferentemente em cada organismo, que assim como se pode ter mais crises nas mudanças climáticas para o frio, isso é também possível para o calor. Entenda que a pessoa já está angustiada por ter que vivenciar uma crise e não necessita de alguém que lhe culpe por estar numa enfermaria ou em casa sentindo dor.
Nesse frio evitamos ao máximo uma exposição desnecessária às baixas temperaturas, respeite isso. Não é por sermos frescos, nem por termos preguiça, nem por nada além de querer nos privar de sentir dor. Se até pessoas saudáveis tendem a sentir dores ósseas e musculares com o clima muito frio, imagine uma pessoa que tenha um organismo propenso a sentir dor por nada.
E para você, que mesmo tendo todos os cuidados possíveis, se mantendo agasalhada(o) suficientemente, se hidratando bem, e toda a ladainha que já está acostumada(o) a seguir para evitar crises, e ainda assim se vê numa internação, ou em casa, mas com dores, desejo que seja forte para suportar mais essa fase, essa etapa dolorosa da vida. Ela é chata, horrível, nos arrebenta em vários aspectos, mas ela é fase, e há de passar. Pensamento firme e coragem para enfrentar mais essa batalha. Somos guerreiros.



Que o frio passe logo e com ele se vá todo e qualquer penar.

Paz e Luz em seus caminhos, e força sempre!

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Site de Mapa Mundial da Doença Falciforme: uma alternativa para sabermos quantos somos e onde estamos


O texto abaixo fiz para colocar numa página, cujo a intenção achei ótima: gerar dados, num mapa mundial, para saber quantas pessoas existem com "X" patologia, neste caso, a Doença Falciforme.

Para que isso aconteça depende de que as pessoas acessem o mesmo e se cadastrem, preenchendo alguns dados solicitados. Há inclusive um espaço de interação, onde podemos trocar mensagens com as pessoas inscritas. Até o presente momento temos apenas 32 pessoas cadastradas, mundialmente, poucas no Brasil.

O site também contabiliza e gera dados para quem é da área da saúde e entende da patologia, ou quem tem familiares com a patologia. Se você é responsável por alguém com Doença Falciforme, também pode preencher o site. Gostaria muito de vê-lo repleto de bonequinhos nos representando ali.
Sei que somos muitos! Mas para que o site atinja o seu objetivo, precisa ser conhecido e divulgado.

Colocarei aqui o link, e caso você chegue até aqui e se interesse, acesse e se inscreva. Divulgue também, se puderem e quiserem, mandem este link por email para que seus contatos o conheçam.

Coletivamente, sempre poderemos mais e seremos mais. 








Meia lua em mim

Fui diagnosticada aos 2 anos de idade. Minha mãe estava grávida de mim quando perdeu seu filho de um aninho para a doença falciforme, ele teve um sequestro esplênico do baço. Quando diagnosticada, o médico disse a minha mãe que ela "não precisava se apegar a mim, pois provavelmente, como aconteceu com seu outro filho, eu não chegaria aos 5 anos de idade". E infelizmente, muitos que nasceram no mesmo período ou anteriormente a mim, ouviram coisas semelhantes. Aos meus sete anos, minha mãe teve um outro filho, Alex, que nem chegou a celebrar um aninho de vida. Também teve a vida ceifada com sequestro esplênico do baço, mas desta vez a perda veio com diagnóstico e acompanhamento, mas a morte ainda veio por descaso.
Passei a minha infância entre hospitalizações constantes e novas previsões de que idade eu não alcançaria. Ultrapassei todas. Hoje estou com 37 anos, e sigo muito bem obrigada.
Quando se tem uma doença crônica, e não precisa ser somente a falciforme, a gente aprende muitas coisas que outros não se atentariam. Ampliamos em nós o amor à vida, a valorização das coisas, dos pequenos momentos, dos dias sem dor, enfim. Não que necessariamente a gente precise ter uma patologia para valorizar a vida, mas é quase certeza de que quem tem, valorizará muito mais.
Eu tenho muita sorte de ter nascido na família em que nasci. Recebi desde sempre muito apoio, amor, dedicação, cuidado, mas sem exageros, sem superproteção. Embora pai e mãe sempre tentem de uma forma ou de outra nos superproteger. Mas aprendi com eles a ser quem sou. Minha mãe nunca deixou que eu me sentisse inferior a ninguém por ter o que tenho. Ao contrário, sempre valorizou mais as minhas conquistas por conta disso. Assim como o meu pai.
Minha trajetória até aqui não foi nada fácil. Sempre abri mão de muitas atividades prazerosas por saber que interfeririam em minha saúde. Mas ao mesmo tempo não deixei de viver e nem de fazer outras coisas que eu sabia ser possível. As crises de dor surgem mesmo quando estamos sob total cuidado. Então, deixar de viver ou realizar algo por medo de que você entre em crise é algo que sim permeia o nosso consciente, mas que não deve nos restringir. Eu já até tomei banho de cachoeira. Sonho de muitos que convivem com a falciforme. Pois devido a água ser gelada, normalmente é crise na certa. Mas sinceramente, muitas vezes é melhor ter uma crise fazendo algo de que se gostaria muito, do que tê-la em casa, sem ter feito absolutamente nada que pudesse tê-la causado. Pelo menos após o feito, vem o prazer de poder dizer: ao menos consegui. Realização é muito importante para todos. Não dá para deixar também de realizar as coisas por medo do que virá depois. Há que se tomar os devidos cuidados e ir em frente, tendo medo ou não.
Estudei, tive dificuldades em concluir o superior devido às constantes internações. E após melhora na condição de minha saúde, acabei deixando de lado a questão do superior, mas vez ou outra sinto vontade de concluir. Só para sentir a satisfação de dizer: consegui. Até meus 45 quem sabe eu concluo.
Na educação básica e de nível médio sempre contei com alguns amigos e professores que me auxiliaram para que eu não perdesse o conteúdo devido às internações. Mas nem sempre isso acontece. Tenho muitos amigos que convivem com a doença falciforme e que não conseguiram concluir o ensino médio ou o básico. Assim como tenho muitos outros com graduação, pós graduação, doutorado e até mestrado. Todos somos capazes. Só precisamos ter nossas necessidades atendidas e respeitadas, seja na vida social, estudantil, profissional... em todos os campos de nossa atuação.
Já exerci por oito anos a profissão de educadora infantil, ou professora de educação infantil. Era concursada e tive que brigar para garantir o meu direito a vaga. Já que os peritos médicos me disseram que eu era "incapaz de ser producente", que "não possuía capacidade laborativa devido à falciforme", que " minha hemoglobina baixa me impedia de fazer qualquer coisa, que já era um milagre eu estar viva, quem dirá querer trabalhar", que " só prestei o concurso para mamar nas tetas do governo enquanto passaria o restante da vida correndo atrás de uma aposentadoria, que me seria negada caso eu realmente assim o fizesse". E foi no terceiro recurso que consegui uma posição a meu favor e entrei no cargo que concursei. Mas devido às mudanças nos rumos da vida, me vi depois de oito anos em atuação, exonerando o cargo. Para viver um sonho, num outro estado, e buscar ser feliz. Fui morar sozinha por um ano e meio. Não deu muito certo, voltei a morar com meus pais. Após certo tempo, voltei a me lançar no mundo. E aqui estou, acompanhada, amada e feliz, em outro estado novamente.
Hoje minha profissão é artesã. Amanhã, pode ser que seja outra. A vida é essa constância de transformações.
Não me permito deixar de fazer algo por medo. Faço com medo e tudo. Não será uma patologia ou qualquer outra coisa que ira limitar o que devo ou não fazer. É claro que eu respeito os meus limites. E respeitando-os sei que posso ir sempre além. Se não me sobrecarrego, consigo aproveitar ainda mais tudo o que preciso aproveitar para ser feliz e estar bem.
Cresci com a dor, e a dor me ensinou a respeitar a transitoriedade da vida. Tudo está em constante mudança e transformação. Tudo realmente passa. Aprendi com a dor a ver também as coisas melhores que a dor. Aprendi com a dor a amar cada segundo sem ela. Aprendi a poetizar a dor. Aprendi a poetizar a vida. Aprendi que o que era foice em mim, provocando transtorno, hoje é meia lua, me inundando de brilho, luz e possibilidades.

A todos vocês meus irmãos de meia lua, desejo sucesso e realizações, muita saúde, amor, conquistas, paz, luz e muita Vida!

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Um amor sob o olhar da meia lua






"Minha história começa há mais de vinte anos. Minha mãe, uma baiana negra linda se apaixonou, num Carnaval de Salvador, por um descendente de italianos. Um branco charmoso, de olhos esverdeados, que se rendeu aos gingados da minha mulata!
Ela conta que durante aquele Carnaval, ao som do Chiclete com Banana, saíram várias vezes das cordas do trio elétrico, para se enamorar sob o olhar da Lua, na areia da praia. Aquilo que surgiu ali, no meio da multidão, no meio dos sons de axé, se transformou no amor que resultou em mim.
Eu, uma meio-mulata, de olhos verdes cor de azeitona, cabelos ondulados castanhos, com traços finos no rosto, nasci de parto normal há 23 anos. Meu nome é Joana. Tive uma infância quase normal. Sempre sentia uma dorzinha nos ossos, e algumas vezes muitas dores que eu não sabia explicar pra minha mãe. Fui ao hospital uma vez e lá a médica disse pra minha mãe que eu tinha uma anemia e que precisava saber o que era. Então, depois de muitas vezes que usei gotinhas de ferro oral pra curar minha anemia, que deixava meu cocô preto, me lembro bem disso, soube ser portadora de Doença Falciforme SBTalassemia. Os anos foram passando foram passando e eu ia convivendo com a doença, com as dores, com as mudanças no meu corpo que demoraram muito mais a aparecer do que eu percebia nas minhas amigas da escola. Eu, diferente delas, volta e meia ficava com o branco dos olhos amarelados. Sempre me achavam um pouco doente e eu sempre ouvia que era assim!
Era difícil minha mãe me "largar', Ia a todos os lugares comigo. Nem sabia o que era amar algum garoto. Nem me permitia isso. Não sabia se podia amar. Não sabia se poderia ser mãe. Tinha medo. Ainda tenho um pouco de medo. Mas um dia, me apaixonei.
No começo tive vergonha de dizer que era doente. Ele me acolheu de uma forma tão linda, que foi difícil não me apaixonar. Um amor de uma meia lua. Hoje estou esperando um fruto desse amor. Minha médica, acredite, usa o codinome Joana há muito tempo, me fez acreditar  que eu poderia levar uma vida normal. Me fez acreditar que eu poderia ser mãe! Eu poderia um dia gerar dentro de mim, de um corpo que sempre acreditei doente, um ser de um amor!
Hoje, me sinto plena!
Me cuido, tomo as medicações que me deixam levar uma vida praticamente normal. Daqui a 4 semanas estarei dando à luz. Hoje acredito ser possível viver com alegria na vida!
Hoje troco minha meia lua, por uma lua nova! Hoje, sei que posso ser uma mulher e posso ter um filho pra chamar de meu!!"

Texto escrito pela Dra Roberta Gava, Hematologista de Brasília.